INAUGURAÇÃO DO BLOG

05 de JULHO de 2010

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Estervalder Freire dos Santos - Ó Wall; sou blogueiro desde 2010. Terminei o Ensino Médio em 1988, não tenho Ensino Superior, Criei o Blog Só Pudia Ser Ó Wal com a ajuda dos amigos: Cristiane Sousa, Ibermon Macena, Jackson Douglas, Junior Cunha e Rodrigo Viany. Sou totalmente eclético só para expor minhas ideologias.... O blog possuí muitos textos, mas nada especifico, acredito que sejam um pouco de tudo e pouco do nada, mas também há outros. Divirta-se.

domingo, 28 de agosto de 2016

Um Menino

(Texto de Luiz Guilherme Piva)
Lotaram o ônibus velho. Além dos quarenta sentados, mais uns vinte em pé no corredor. Com bandeiras, bumbos, cornetas, apitos, as cabeças para fora, batendo as mãos na lataria e gritando o nome do time. Pressionavam o motorista para andar mais depressa. Temiam se atrasar para o jogo – no campo do adversário, em outra cidadezinha, a uns trinta quilômetros. Ele tentava, acelerava, dava saltos nas arrancadas, mas o motor já não respondia tanto. Entraram na cidade consultando os relógios. De repente, o ônibus parou. O motor ligado, mas sem movimento. Começou a gritaria. Partiram para cima do motorista. Ele apontou o para-brisa: na ausência do domingo, no sol humilhante do domingo, na poeira do domingo, um enterro entupia a passagem. Poucas pessoas, maltrapilhas. Mulheres roxas. Crianças de espiga. Homens vazados. E um caixãozinho de seis palmos carregado por um velho e uma velha quase inexistentes. Três torcedores decidiram ir lá tentar abrir caminho. Pediram calma aos demais, ajeitaram as camisas e os cabelos e desceram. Andaram no meio do cortejo. Próximos ao caixão, onde havia mais adultos, falaram, perguntaram, fizeram sinais. Nada. Não respondiam. Não se mexiam. Não pareciam vê-los ou ouvi-los. Adiantaram-se para perto do velho e da velha. A mesma coisa. Repetiram: o ônibus, o jogo, o time, os torcedores, o horário. Nada. Um deles então viu que o caixão não tinha tampa. Inclinou-se e olhou. Viu um menino de uns cinco anos abraçado a uma bola. Empalideceu, paralisado. Mostrou com o rosto para os outros dois, que arregalaram os olhos e congelaram. Como estavam diante do caixão, impediam o enterro de avançar. Mas ninguém os olhava. Todos de cabeça baixa – almas puídas levando o menino morto com a bola nas mãos no vão do domingo –, parados. O pessoal do ônibus começou a buzinar, tocar os instrumentos, gritar, xingar. Iam perder o jogo. Então o velho e a velha iniciaram, quase em silêncio, uma ladainha enrolada, numa língua desconhecida. Os de trás os seguiram com vozes surdas. Um canto estranho – e tão baixo que abafava a zoeira que vinha do ônibus. Os três, parados na frente, assustados, não tiravam os olhos da criança sem cor, esquálida, com a bola na mão. E então, sem se darem conta, começaram também a balbuciar a cantiga que todos entoavam. Pousaram as mãos no peito e puseram-se a andar ao lado do caixão, murmurando a mesma melodia, a mesma letra irreal, junto com todos. Os que estavam no ônibus, impacientes, desceram e, com empurrões, abriram passagem no enterro até chegar lá na frente. Queriam liberar a rua para o ônibus passar. Mas viram o caixão. E o esqueletinho abraçado à bola. Estancaram como à beira de um abismo. Em volta todos cantavam a canção grave, ininteligível. Não falaram nada. Perplexos, vazios, abaixaram as cabeças e, um a um, foram se juntando ao cortejo e somando suas vozes à cantiga. E até o final do dia, quando o sol também era sepultado nos morros, quando a poeira entalava todos os poros, quando o oco da cidadezinha era fechado sob uma tampa escura, até a hora em que puseram o caixãozinho num buraco baldio, todos eles, que não mais se lembravam do jogo nem de si mesmos, seguiram o enterro, sussurraram a mesma canção crespa que os demais cantavam – cada vez mais baixo, cada vez mais triste, cada vez mais uníssona. Antes da primeira pá de terra, com o caixão destampado, o motorista do ônibus pediu que esperassem. Entrou no buraco, tirou a bola das mãos e a pôs nos pés do menino. Subiu e sinalizou com a cabeça para que continuassem. Com poucas pás estava tudo coberto e acabado. Mudos, voltaram para o ônibus. Entraram e sentaram-se em silêncio. O ônibus arrastando-se na estrada e na noite. Foi quando alguém, lá no fundo do ônibus, puxou, baixinho, a mesma ladainha do enterro. E depois outro. E mais um. Até que todos, aos poucos, os seguiram e começaram a cantar, juntos, quase sem se fazer ouvir, o mesmo canto desconexo e dolorido com que sepultaram o menino e sua bola. Como se o trouxessem no colo, como se o ninassem. Ó Wall!!!

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