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05 de JULHO de 2010
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quarta-feira, 9 de janeiro de 2013
A Outra Vida
...Era uma manhã de domingo de sol forte. Dona Rita acordou antes das oito, levantou-se e foi tomar um banho. O marido ainda dormia, um sono pesado e sem sonhos. Voltou ainda molhada para o quarto, vestiu a roupa de baixo e buscou no guarda-roupa o vestido de seda que o marido lhe dera de presente ao voltar de uma de suas tantas viagens de negócio.
Colocou o vestido em cima da penteadeira e ficou em frente ao espelho observando seu corpo. Embora estivesse já com mais de 50 anos, ainda mantinha-se conservada, o que era motivo de inveja para suas amigas. Olhou o relógio e vestiu correndo a roupa, deu alguns retoques no cabelo e desceu.
– Seu Bartolomeu não vai tomar café com a senhora? – perguntou Conceição, uma mulata gorducha que trabalhava na casa há mais de quinze anos.
– Não sei, ele deve descer mais tarde. Quando ele acordar diga a ele que fui à missa e que depois vou passar no centro. Talvez eu não volte para o almoço.
– Mas a senhora não vai tomar café?
– Estou com pressa.
Tomou de um gole a xícara de café e saiu apressada.
Ao voltar, pouco depois da uma da tarde, reparou que a mesa estava posta, intocada. Perguntou pelo marido.
– Seu Bartolomeu ainda não desceu, madame. – respondeu contrariada a mulata – Posso tirar a mesa ou a senho…
– Pode tirar, já almocei. Mas o que está acontecendo com este homem? – perguntou subindo as escadas.
Conceição começou a tirar a mesa, começando pelos pratos. Quando estava arrumando tudo no armário ouviu um grito que lhe gelou a alma. O susto foi tamanho que ela não conseguiu segurar os pratos, que se espalharam em cacos pelo chão. Era Dona Rita. A mulata subiu correndo as escadas e viu da porta a patroa de joelhos em cima do marido:
– Acorda Bartolomeu! Acorda!
– O que foi, madame?
– Ele não quer acordar! Me ajude, vamos! Acorda Bartolomeu!
O desespero da patroa era tamanho que Conceição se pôs também a chacoalhar e gritar para que o homem acordasse. Foi inútil. Confusa, Conceição desceu e preparou correndo um copo com açúcar. Tremia tanto que nem conseguia segurar direito o copo. Bebeu ela mesma o copo de água com açúcar e preparou outro para a patroa.
– Foi um ataque cardíaco, Dona Rita. – disse o doutor.
– Mas ele não tem problema cardíaco, Dr. Carlos. – perguntou indignada Dona Rita.
– O coração é assim mesmo. Bate, bate, bate e, sem mais nem menos, pára.
– Mas ele é muito jovem ainda Dr., não tem nem sessenta anos. Não é justo! Um homem tão bom, nunca fez mal a ninguém. Ajuda todo mundo, dá dinheiro aos pobres.
– Dona Rita, sei que isso não é nenhum consolo, mas pelo que pude ver ele se foi sem sentir nenhuma dor. Nós talvez não tenhamos a mesma sorte. Vou receitar uns comprimidos para a senhora ficar mais calma. – estendeu a mão com a receita médica, mas Dona Rita nem percebeu.
– Isso não vai trazer meu Bartolomeu de volta, eu quero meu Bartolomeu…
Dr. Carlos era um médico experiente. Em seus muitos anos de medicina já tinha aprendido muita coisa sobre a natureza humana. Sabia que Dona Rita ainda passaria algum tempo no estado de choque em que se encontrava. Depois o choque se transformaria em tristeza e o tempo se encarregaria do resto. Bastava apenas tentar atenuar seu sofrimento, mantendo sua mente afastada da realidade, sob o efeito dos calmantes. Entregou a receita a Conceição, se despediu de todos e foi embora.
Os preparativos para o velório e o enterro foram feitos por Davi, um dos sobrinhos de Bartolomeu. Davi era advogado tributarista, nunca passava um mês sem visitar a casa de Dona Rita. Nos últimos anos as visitas se tornaram mais escassas, pois, segundo ele, havia recebido uma promoção e estava trabalhando feito louco. Sempre com muita pressa, telefonava meia-hora antes para avisar que estava chegando. Vestindo a roupa do trabalho, chegava e ia direto para o banheiro. Lá trocava os sapatos por sandália e o terno por um short e camiseta, que já trazia em sua pasta. Só depois se sentava à mesa. Em suas visitas era sempre alegre e extrovertido, muito diferente do rapaz que estava agora em pé ao lado de Dona Rita no velório de seu tio.
Seu Bartolomeu era contador. Começou sua vida assim. Honesto e trabalhador não demoraram até conquistar bons clientes. Montou então outros escritórios nas cidades vizinhas e começou a diversificar seus investimentos. Antes de morrer já tinha vários imóveis e levava uma vida de causar inveja. Dava festas e banquetes, convidava todos os seus funcionários e pedia para que eles próprios convidassem todos que quisessem. Era também bom marido. Dona Rita só tinha uma queixa: não ter tido filhos, este sempre foi seu maior desejo. Um casal exemplar, toda a cidade dizia.
O velório se deu na própria casa. A sala estava completamente lotada. Amigos, funcionários de todos os escritórios, inclusive os das outras cidades, e até alguns políticos compareceram. Dona Rita, dopada pelo efeito dos calmantes, ficou sentada ao lado do caixão contemplando o corpo imóvel do marido. A única vez que tirou os olhos do caixão foi para pedir a Conceição que trouxesse um copo de água para tomar mais uma dose dos comprimidos receitados pelo Dr. Carlos. Davi encarregou-se de manter os amigos menos chegados à distância da viúva, com mil desculpas.
Foi ele o primeiro a perceber as duas mulheres que se chegaram para perto do caixão. Choravam aos baldes. À primeira vista qualquer um percebia que eram mãe e filha, pois eram parecidíssimas. A mãe mantinha-se a uma distância prudente. A filha, ao contrário, puxava a mãe pelo braço e chegava cada vez mais perto do caixão. Não demorou para que todos notassem a presença das duas. Quando a mãe percebeu, cochichou algo no ouvido da filha e puxou-a pelo braço. Foi o estopim. A filha, em um súbito acesso de desespero se jogou sobre caixão:
– Papai! Papai!
Todos se entreolharam. Dona Rita só percebeu o que estava acontecendo quando Davi se pôs a ajudar a mãe a tirar a filha de cima do caixão. Dopada pelos calmantes, não esboçou nada além de um levantar das sobrancelhas. Permaneceu sentada, olhando a cena, parecendo não acreditar no que estava acontecendo.
Quando Davi conseguiu tirar garota de cima do caixão, levou mãe e filha para um dos quartos e pediu que não saíssem sem antes falar com ele. Voltou para a sala e foi direto ter com Dona Rita.
– Quero falar com elas. – disse firmemente Dona Rita.
– Tia, a senhora não está em…
– Quero falar com elas agora! – e se levantou.
Foram direto para o quarto. Ao deixarem a sala, o buchicho tomou conta da casa. Todos se perguntavam como é que um homem como seu Bartolomeu poderia ter uma amante, e com uma filha daquela idade. Ninguém arredava o pé do velório, todos esperavam ver o desfecho daquela história. Foi quando dona Rita surgiu no topo da escada aos berros:
– Filho de uma puta! Cachorro! Você vai direto para o inferno, seu desgraçado!
O efeito dos calmantes acabou de súbito e tudo que se via em seu rosto era a ira. Dona Rita desceu as escadas aos pulos, se atrapalhando com os sapatos de salto alto. Foi direto ao caixão e encarou o rosto do morto, segurando-o pelo colarinho:
– Seu filho de uma égua! Se não estivesse morto eu te matava agora mesmo, seu corno!
Dona Rita deu um passo para trás e empurrou com toda a força o caixão, que foi ao chão. Os presentes tentaram segura-la, mas ela esperneava e gritava:
– Fora daqui! Todos vocês, fora daqui! Seus cornos! Vocês sabiam, com certeza sabiam! Porque ninguém me contou? Fora! Fora! – gritou com um sapato em cada mão.
No turbilhão de sua ira, arremessou os sapatos, as coroas de flores, os vasos, e tudo mais que encontrou pela frente em cima da multidão, que saiu em disparada. Um minuto depois só restavam: ela, Conceição, Davi e o morto. Foi quando ela caiu em si. Sentou-se no chão ao lado do caixão do marido e se pôs a chorar:
– Como é que você pôde fazer isto comigo, Bartolomeu? Logo você, que sempre foi tão honrado, tão honesto. Nunca pensei que você fosse capaz de me trair, quanto mais manter uma segunda família. O que o pessoal da igreja vai dizer? Você acabou comigo, Bartolomeu.
Não foi ao enterro. A cidade toda compareceu, não por amor ao morto, mas esperando outro escândalo. Segundo Davi, nem a segunda esposa e a filha estavam lá.
Desde o ocorrido o sobrinho passava todo o seu tempo livre com a tia. Foi ele quem se encarregou de toda papelada para passar para Dona Rita os bens do morto. Dona Rita insistia em deixar algum bem para a segunda esposa e a filha, afinal, mesmo bastarda ainda era filha de Bartolomeu. Duas semanas depois do enterro, Davi voltou para casa com um inventário de tudo o que o morto deixara.
– Tia, tenho boas e más notícias. – disse contrariado.
– Primeiro as más.
– Tio Bartolomeu tinha muitas dívidas. Os escritórios de contabilidade já não estavam indo bem quando titio ainda trabalhava, e agora, depois que ele morreu, os clientes estão indo embora. Os três escritórios estão dando prejuízo.
– E o que podemos fazer filho? Eu não entendo nada disso.
– Sugiro que a gente desmonte os escritórios.
– Mas eu vou viver do quê, meu filho?
– Olha só, tia. Vocês sempre levaram uma vida de reis, não sei de onde tio Bartolomeu tirava tanto dinheiro. Ele devia ter outras fontes, mas não consegui descobrir. Sei que ele tinha uma casa na Dom Pinheiro que é até maior que esta, o aluguel deve ser uma fortuna. Amanhã vou até lá para dar uma olhada. E tem também a casa onde mora aquela outra mulher.
– Não podemos vender os escritórios?
– Ninguém compra um negócio que dá prejuízo, tia. Vamos vender os equipamentos e móveis dos escritórios para tentar pagar os funcionários. Se sobrar algum dinheiro, vai ser muito pouco. Creio que mesmo vendendo tudo ainda falte muita coisa.
– Isso mesmo, meu filho, os funcionários em primeiro lugar. Era o que dizia seu tio.
Conceição serviu então o jantar: sopa de ervilhas. Dona Rita desde o velório não era a mesma pessoa. Vivia despenteada, arrastava suas sandálias pela casa o dia todo. Não saía para nada. Sentava-se na cadeira em frente à televisão e ali ficava, como que esperando a morte. Se não fosse Conceição insistir, nem banho tomava. Tomaram a sopa em silêncio. Pouco antes das dez Davi foi para a casa, queria ir cedo ver a casa na Dom Pinheiro.
Voltou no outro dia de manhã entrando correndo pela casa.
– Bom dia, tia.
– Bom dia, meu filho. Mas que pressa é essa? Vai tirar o pai da forca?
– Tia, tenho que lhe contar uma coisa, mas nem sei por onde começar. – disse fazendo uma careta.
– Comece pelo começo, filho. Sente-se. – disse, puxando uma cadeira.
– Tia, fui ver a casa da Dom Pinheiro.
– Ah é? E é grande mesmo?
– É enorme, tia. É uma mansão! Acho que nunca vi uma casa tão bonita em toda a minha vida.
– Mas que bom! – disse sorrindo – Então vai ser fácil de alugar.
– É aí é que está. Ela já está ocupada.
– Ocupada? – estranhou a tia – Mas o Bartolomeu nunca me falou nada disso.
– Bem, as outras não estão alugadas mesmo, mas esta está.
– Mas que bom! Não teremos que nos preocupar então. E você conheceu quem está morando lá? Eles têm contrato, tudo certinho? – disse a tia com um sorriso.
– Tia, nem sei como dizer isto… – respirou fundo e tomou coragem, falou devagar: – A casa é uma casa de tolerância. – disse baixando a voz.
– Casa de tolerância? Como assim? – indignou-se a tia.
– É uma… – baixando ainda mais a voz – É uma casa de tolerância, tia. Um bordel.
– Um bordel? Na minha casa? Mas que absurdo! Você tem certeza do que está falando?
– Se tenho! Inventei uma história e consegui entrar para dar uma espiada, coisa de luxo. Tudo de primeira, as cortinas, o carpete, os vitrais. Tudo lindo!
Dona Rita parou um momento e ficou fitando a mesa.
– Mas não é possível… Seu tio nunca me deu uma dor de cabeça quando era vivo, agora depois de morto é que vai aprontar. Mande tirar essas putas de lá. Como é que o seu tio não sabia que nossa casa foi transformada num puteiro? O que dirá essa gente da cidade?
– Tia, esse é o problema. O tio Bartolomeu sabia. Falei até com a mulher que toma conta do lugar, uma tal de Sofia.
Ao ouvir a última frase do sobrinho, Dona Rita foi ao chão. Nem com água fria no rosto acordou. Levaram-na para o quarto e a colocaram deitada na cama.
Desceram, ainda se recuperando do susto. Conceição fez um café.
– Eu sempre desconfiei do Seu Bartolomeu – disse a mulata enquanto enchia duas xícaras.
– Pois eu nem em sonhos desconfiaria de uma história dessas, lhe garanto.
– Seu Bartolomeu vivia viajando, dormia fora muitas vezes. Era um homem muito bondoso, mas quando a esmola é demais… Nunca falei nada porque gosto deste emprego.
– Ah, Conceição! Você pode até dizer que desconfiava que meu tio pulava a cerca, mas isso o que tem acontecido é demais.
Quando o relógio bateu as oito da noite Davi se despediu de Conceição.
– Espere! Você vai me dar uma carona – disse a viúva, descendo as escadas.
Ela usava um vestido preto, o mesmo que usara no último baile. O cabelo bem esticado e amarrado para trás.
– Tia? Aonde a senhora vai? – perguntou intrigado.
– Vamos embora. Sem perguntas.
Entraram no carro e o sobrinho quis saber para onde iriam.
– Para a mansão do Dom Pinheiro, quero olhar esse lugar com meus próprios olhos.
– Mas tia…
– Cale a boca e dirija – cortou a tia.
Ao parar o carro, Dona Rita esperou que o sobrinho lhe abrisse a porta.
– Tia, a senhora tem certe…
– Absoluta! – interrompeu-o de novo a tia.
Na porta, um segurança de terno e gravata barrou a entrada, intransigente.
– Não permitimos senhoras na casa. É só para homens, madame.
– Eu quero falar com a Sofia. – disse firmemente.
– Da parte de quem? – estranhou o segurança.
Dona Rita não titubeou. Tirou da bolsa um pequeno espelho, conferiu a maquiagem e o vestido. E, revelando a se mesma como seriam seus dias deste momento em diante, altivo, falou enquanto entrava pelo portão:
– Pode dizer que é a patroa.
Ó Wal!!!
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