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05 de JULHO de 2010
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quarta-feira, 16 de janeiro de 2013
O Morto
...As instruções eram claras e simples. Figueira chegou às 3 da manhã em ponto, exatamente como Joaquim havia solicitado. O carro já estava abastecido e os pneus calibrados. Joaquim entregou as chaves, os documentos e um dinheiro para o combustível e algum lanche no meio do caminho. Quando voltar lhe pago o frete, disse. E faça boa viagem.
O trabalho era fácil e rápido. Figueira estava desempregado e sobrevivia de bicos. Este dinheiro seria muito bem-vindo, mas ainda assim estava incomodado. Enquanto colocavam o caixão no carro ele procurou ficar longe. Saiu pelo portão da garagem e só voltou quando a “encomenda” estava no lugar. Prenderam bem isso aí? – certificou-se. Não quero ter que parar no caminho para amarrar esse negócio.
Estava de mau humor. Já não bastasse a falta de emprego, discutira com a esposa horas antes. Vou ficar com a minha tia – disse a mulher enquanto jantavam. Ele passou a noite tentando dissuadí-la até chegar a hora de ir para a funerária. Não conseguiu. No caminho não pensava em outra coisa. Não sabia se Adelaide estaria em casa quando voltasse. Imaginou uma desculpa menos vergonhosa que a verdade para desistir do trabalho, mas ele precisava do dinheiro.
As ruas estavam calmas, ninguém na rua. O ronco macio do carro da funerária rompia o silêncio da madrugada. Na saída da cidade parou em um posto de gasolina. Tomou um expresso duplo e comprou cigarros e fósforos. Precisava deles para não dormir. Voltou para o carro. Ainda não estava acostumado com a sua companhia de viagem. Que mal há nisso? Está morto! – pensou.
Abriu a porta, ligou o toca-fitas do carro e acendeu um cigarro. Ficou parado, pensando em Adelaide. Imaginava se ela teria desistido e dormido, ou se estaria arrumando as malas. Será que já falou com a tia? Se já contou tudo o que aconteceu para a tia vai ser mais difícil mudar de idéia.
- Que se foda! – disse. Jogou a bituca pela janela, deu a partida e saiu para a estrada.
Às 4 da manhã só havia caminhões na estrada, e mesmo assim eram poucos. Vez por outra ultrapassava um ou cruzava outro. Prestava atenção no rádio para não pensar na mulher. Sabia que não adiantava nada ficar se lamentando. Também não havia o que fazer e só teria notícias dela quando voltasse para casa. A estrada subia e descia os morros, sem curvas. O rádio pegava bem na parte mais alta da pista, mas o som sumia na descida do morro.
Quando o rádio ficava mudo era difícil não pensar na mulher. Figueira acelerava para chegar mais rápido ao topo e ocupar sua mente da música. Estava ficando irritado com o some-aparece. Desligou o rádio. Deu uma olhada no odômetro. Um terço da viagem. Olhou o relógio e fez as contas. Chegaria ao seu destino pouco antes das 8 horas da manhã.
O sono apertava. O cansaço se fazia sentir. Joaquim bocejava. Arregalava os olhos em seguida, sentia-se reanimado com isso. Seu piscar de olhos era cada vez mais lento, passando de décimos de segundo para segundos inteiros com os olhos fechados. Ele sabia dos riscos que estava correndo se dormisse ao volante. Quando ele achava que não fosse mais possível continuar, surgiu um posto de gasolina à frente.
- Dois expressos duplos, por favor! – exclamou com falsa animação. – Um para viagem.
- Tem defunto ali? – perguntou o balconista apontando o carro.
- Tem. – respondeu Figueira, depois de estranhar a pergunta.
- Vixe Maria! Você é corajoso.
Figueira estava tão preocupado com seu casamento que nem havia se lembrado do morto durante a viagem. Pagou o café, entrou no carro e voltou para a estrada.
Há esta hora já não havia nem os caminhões na pista. Figueira ligou de novo o rádio, mas só ouviu estática. Resolveu cantar para espantar o sono. Cantou uma, cantou duas, cantou três músicas seguidas. Mas quando estava começando a quarta música se lembrou de Adelaide. Merda! – gritou dentro do carro – Três vezes merda!. E o sono voltou mais forte desta vez. Sem rádio, sem curvas que exigissem sua atenção, sem carros nem caminhões para cruzar ou ultrapassar.
- Puta que pariu! Como é foda viajar sozinho! – disse para si mesmo.
- Se me der aquele café – ouviu uma voz vindo de trás – converso com você a viagem inteira.
O susto não veio de imediato. Figueira estava tão sonolento que não reagiu. Ele fitou o morto sorrindo e voltou o olhar para a estrada novamente. Quando percebeu o que acontecia, a adrenalina já estava espalhada por todo seu corpo. No susto, ele pisou no freio e quase perdeu o controle do carro. Parou no acostamento e se encolheu no assento, pronto para sair em disparada. Estou maluco – pensava.
- Então, vai me dar o café ou não? – repetiu o morto.
Figueira quis sair correndo, mas o corpo não respondeu ao comando. A mente ordenou que o corpo abrisse a porta, pulasse para fora do carro e saísse em disparada. Eram muitas ordens seguidas, e o corpo não respondeu. Em vez disso, Figueira se espremeu mais ainda no assento e fechou os olhos. Ensaiou um pai-nosso.
- Amigo, se vai ficar aí se borrando, tudo bem. Mas me deixe ir tomando meu café enquanto isso – disse o morto impaciente.
- Hein? – Figueira não estava ali.
- O café! É tudo que eu quero. Este café preto, expresso, quentinho, forte. – disse apontando – Desses que levanta defunto! – riu.
- Pode pegar – respondeu apavorado, abrindo lentamente os olhos, duvidando do que via.
- Até que enfim! Porra meu, você é um homem ou um saco de batatas?
O morto estava à vontade. Vestia um terno preto impecável, camisa branca e gravata cinza. Passou entre os bancos e sentou-se no assento do carona. Bateu forte no painel do carro com a mão e gritou: – Vamos nessa, cara!
Figueira não teve reação. Calado, abriu os olhos e ligou o carro. Voltou para a estrada. O morto tirou a tampa de plástico do café e se deliciou com o aroma. – Puta que pariu! Que maravilha de café!
Ele era jovem, magro e alto. Se apresentou longamente. Seu nome era Valdir e era advogado trabalhista quando ainda vivo. Falava pelos cotovelos. Contou sobre sua infância, seu casamento, e, claro, sobre sua morte. Não se queixou em nenhum momento, nem da vida e nem da morte prematura. Figueira ficou mais relaxado, ouvia calado e deu até algumas risadas com as histórias do morto. Mas quando este começou a contar sobre algumas histórias de seu casamento ele se lembrou de Adelaide.
- É, meu amigo, só quem tem um amor verdadeiro sabe como é difícil esta situação – apiedou-se o morto, lendo seu pensamento.
- Eu gosto muito de Adelaide – contou.
- Eu sei. Quando mortos podemos sentir estas coisas. As dores, os sentimentos, tudo nos fica transparente.
- O pior é saber que ela tem razão, sabe? Estou sem trabalho há meses e ela é quem paga as contas em casa. Não é fácil para mim, acabo discutindo por qualquer coisinha que acontece.
- Ah, meu amigo. Tens estado muito irritado, e sem motivo. Sua mulher não tem nenhuma culpa neste cartório e tem levado patadas por conta do seu desassossego. Isto não é justo, meu caro. Se ela for mesmo embora, a culpa será sua e de mais ninguém – sentenciou o morto.
- Não diga isso, homem! Já não chega o meu estado? – indignou-se o motorista, já em prantos.
- Não fique assim, meu amigo. Saiba que tudo acabará bem. Não devia te dizer, mas na situação que te encontras tenho medo que faças uma merda. Tua mulher está em casa neste momento, preparando um café tão forte quanto este que me fez levantar.
Dito isto, Figueira fitou o morto. Sua visão se tornara turva, embaçada. O morto parecia ficar distante. Tudo ao seu redor começou a girar.
Sentiu uma mão em seu ombro. Alguém falava com ele. Quando abriu os olhos o dia estava claro. Um homem com macacão laranja falava alguma coisa que ele não conseguia entender. Olhou à sua volta, estava confuso. O vidro do carro estava todo estilhaçado.
- O senhor está bem? Está me ouvindo? – perguntava o paramédico.
- Não sei, acho que estou. O que aconteceu? – perguntou Figueira.
- Acho que o senhor dormiu e saiu na estrada. Está sentindo dor? Vamos tirar você daí em um instante. – tentava tranqüilizá-lo o médico.
- Estou bem. Me ajude a abrir esta porta – disse relutando.
O médico insistiu para que ficasse no carro. Não adiantou. Figueira chutou a porta e conseguiu sair. Caminhou em volta, estava com o corpo dolorido. Na parte de trás do carro, o caixão estava sem a tampa. O morto no seu lugar, morto.
Outro carro de funerária estava à beira da estrada. Dois homens tentavam puxar o caixão, sem conseguir movê-lo. Chegou um terceiro, mais forte. Puxaram com mais força. Um deles tropeça e o caixão vai ao chão, chacoalhando o morto.
- Hei pessoal – grita Figueira – Cuidado aí com o homem, poxa.
Os homens, todos acostumados a lidar com os corpos, se entreolharam e não conseguiram conter a gargalhada.
- Fica frio – responde um deles – Defunto não reclama.
- É seu parente? – pergunta outro.
Figueira parou por um instante, fitou o morto e respondeu com firmeza:
- Parente, não. É meu amigo. Ó Wal!!!
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