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05 de JULHO de 2010
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quinta-feira, 10 de janeiro de 2013
A Vingança
...Gustavo sabia que iria morrer a qualquer momento. Sentia o cheiro de seu sangue se espalhando pelo chão da varanda. Suas roupas estavam empapadas e ele não conseguia mais se mover. Ouviu Andréia se aproximar calmamente. Viu ela parar a um passo da poça vermelho-escuro, que aumentava. Enquanto agonizava, ele tentava entender tudo aquilo. Pensava no quanto havia sido tolo.
- Fique tranqüilo, Gustavo – disse Andréia enquanto se abaixava – Já está acabando.
A viagem no feriado prolongado fora programada com bastante antecedência. Hélio e Andréia haviam comprado a chácara na serra há cerca de seis meses. Convidaram Gustavo e Regina outras duas vezes para visitá-los, mas os dois estavam sempre ocupados. Gustavo estava louco para conhecer o lugar. Estava também desesperado para tirar alguns dias de folga do trabalho. Fazia dois meses que trabalhava até nos fins de semana e virava as noites no escritório.
Saíram de São Paulo na quinta-feira logo depois de anoitecer. Seguiram o mapa feito por Hélio e em poucas horas estavam atravessando a porteira da chácara. A noite estava fria e uma neblina fina se formava nos morros que ficavam em frente à chácara.
- Nossa! Tudo é muito lindo aqui – elogiou Regina.
Hélio trouxe da cidade vários tipos de queijos e vinhos, especialmente selecionados para a ocasião. Não poupou esforços para agradar os amigos.
- Este vinho é de uma safra especial. Eu não entendo nada disso, mas o vendedor entende e me recomendou – disse, dando uma gargalhada.
- Imagine se não fosse bom. Quase duzentos contos por uma garrafa de vinho – completou Andréia.
Gustavo sentiu-se à vontade na companhia dos amigos, finalmente livre do trabalho. Deliciou-se com o vinho e já estava levemente embriagado. Regina passou a maior parte do tempo calada. Ele percebeu mas não deu importância. Sabia que ela estava irritada nos últimos dias e não queria provocar uma discussão. Andréia pegou seu maço de cigarros e foi para a varanda. Gustavo foi atrás.
- Muito legal essa casa – puxou conversa.
Andréia não respondeu. Estava séria.
- Gustavo, tenho um assunto muito sério para tratar com você – disse depois de um longo trago.
- Caramba. Tão sério assim?
- Você nem imagina. Mas não vou falar agora. Quero estar tranqüila, sem o Hélio por perto.
- Ok. Mas você não pode nem adiantar o assunto? Fiquei curioso.
- Não quero criar um climão. Relaxe. Você pode esperar.
- Se não tem jeito, tudo bem. Eu espero – disse sorrindo.
- Claro que espera – sorriu – Você não tem escolha.
Depois de mais algumas taças de vinho, cansado, Gustavo se despediu dos amigos e foi se deitar mais cedo do que de costume. Os outros continuaram na sala, conversando, rindo e bebendo.
- Gustavo! Gustavo! Acorda porra! – a voz de Andréia.
- Pô, Andréia! Ainda nem amanheceu, me deixa dormir – respondeu sonolento.
- Acorda logo, seu filho da puta! – disse puxando sua orelha – Vem logo, quero falar com você.
Gustavo saiu da cama relutante. Ainda sonolento, seguiu com Andréia para a sala. Ela acendeu um cigarro, estava muito nervosa. Tentou acalmá-la. Em vão.
- Cara, esse seu amigo é um filho de uma puta. Há quanto tempo a gente se conhece? Quinze, vinte anos? Nem sei.
- Andréia, se acalme. Seja o que for…
- Gustavo, você não tem noção do que eu tenho passado. O Hélio está me chifrando na maior cara de pau. E nem tente defender esse canalha!
Gustavo tinha uma irmã mais velha e conhecia bem esta situação. Andréia desconfiava que estava sendo traída, como acontecera dezenas de vezes com a sua irmã. Ele sabia que não adiantava tentar acalmá-la, e que só depois que a raiva passasse, ela talvez ouvisse o que ele dizia.
Seria uma longa noite de ira, que depois daria lugar ao choro e aos lamentos. Pegou uma garrafa de vodka na geladeira e serviu pura, um copo para ele e outro para ela. Tirou um cigarro do maço, acendeu um e ofereceu outro para Andréia. Tinha a consciência de que ela precisava de alguém para desabafar, um ombro amigo. Estas crises de ciúme e desconfiança eram comuns a praticamente todas as mulheres. Mas, a traição mesmo, muitas vezes nem acontecia, puro fruto da imaginação e da insegurança. Com um estoque de cigarros e vodka, ele estava preparado pata a longa noite de lamúrias. Tudo transcorria exatamente como das outras vezes, e exatamente como nas várias vezes que sua irmão fora também, hipoteticamente, traída. Até que, sem mais nem menos, Andréia tirou da bolsa um revólver:
- Eu vou matar esse filho da puta – disse resoluta, a arma em punho. – E vai ser hoje, você vai ver.
Gustavo, já embriagado, foi pego de surpresa.
- Puta que pariu Andréia! Que porra é essa? Abaixa essa merda. De onde você tirou essa arma?
- Da casa do caralho! Vou descarregar essa porra em cima daquele viado filho da puta!
A situação agora se complicava. Com o coração a mil, Gustavo se levantou e tentou tirar a arma da mão de Andréia. Ela se recusava a entregar.
- Cara! Você é louco? Não vou te dar meu revolver – disse empurrando Gustavo de volta ao sofá.
- Andréia, que absurdo! Guarde essa arma e vamos conversar. Você sabe que pode confiar em mim. Eu sou seu amigo.
- Amigo é a puta que te pariu! Você é um corno sem-vergonha, um babaca chifrudo!
- Andréia, me dá essa arma. Anda logo! – tentou Gustavo.
- Vem pegar, corno! – gritou Andréia – Corno! Chifrudo!
- Chifrudo por quê, sua maluca? A chifruda aqui é você! – respondeu com raiva.
Andréia arqueou o corpo em uma gargalhada incontrolável. A arma caiu no chão. Gustavo pegou a arma depressa e guardou no bolso da calça, antes que Andréia a alcançasse.
- Caralho, Andréia! O que você tem na cabeça? Que susto da porra!
- Cara, você é mesmo muito cuzão! – disse ela enquanto se levantava – Acha mesmo que eu sou alterada? Acha? – foi em direção à porta. – Pimenta nos olhos dos outros é refresco, seu cornão!
Andréia abriu a porta. O ar gelado e úmido da noite entrou na sala.
- Agora me diz, ô certinho. Me diga onde está sua querida esposa, a sua queridinha? – perguntou sorrindo – A Regininha, filha da putinha, onde está? Onde está a sacaninha, a vagabunda? Como você diz? Pituchinha!
Gustavo nunca havia visto Andréia naquele estado. Não entendia o motivo para ela insultar sua esposa. Mas sua cabeça começava a trabalhar, lembrando os acontecimentos do dia, da viagem. Regina estava emburrada, nem queria vir. Ele sentia rancor e raiva no que Andréia dizia. E o que era mais aterrador: ela parecia ter certeza do que dizia. Começou entender o que Andréia queria dizer. Caminhou até a soleira da porta, o vento gelado batendo em sua face e entrando por entre os botões da camisa. Alguns instantes depois, enquanto os olhos se adaptavam à escuridão, conseguiu ver os contornos na escuridão do lado de fora. Deu mais um passo à frente.
Imaginou onde estaria Regina, se ainda dormindo na cama de onde ele saiu, ou na cozinha, talvez no sótão. Não. Ele sabia. Regina não estava na casa. Mais um passo à frente e as coisas começavam a se encaixar. A irritação de Regina, o nervosismo de Andréia.
A realidade era pior do que ele podia imaginar. Não era uma simples desconfiança. Tudo acontecia ali, bem na sua frente, dentro do carro de Hélio. Não havia dúvidas. Deu mais um passo à frente e percebeu os vidros embaçados, o movimento. Não conseguia ver os detalhes no interior do carro. E de dentro também não se via o lado de fora. Mas Gustavo não precisava ver para saber o que estava acontecendo. Mais um passo e pôde ouvir os murmúrios. Inconfundíveis: estavam fazendo sexo. Os movimentos eram ritmados e amplos. Uma trepada vigorosa. Os gemidos, ele conseguia ouvir, eram de Regina. Há muito não a ouvia gemer assim. O seu êxtase fazia-se sentir do lado de fora do carro.
Gustavo olhou para trás e viu Andréia, tão atordoada quanto ele. Tentava buscar uma explicação. Percebeu que chorava de ira, de repulsa, de desgosto. Não queria chegar mais perto, não queria mais ver. Deu um passo atrás e caminhou para perto de Andréia. Imaginava se não estava no meio de um pesadelo. Realmente estava. Um pesadelo terrível. E real. Sentia-se como um garotinho no quarto escuro, frente a frente com o bicho-papão. Estava sem ação.
Ouviu o barulho da porta do carro se abrindo. Ouviu Hélio recomendar para que Regina não fizesse barulho. Primeiro saiu ela, de camisola. Fechou a porta e esperou que Hélio saísse do carro. Os dois, sorridentes. Não sabiam que haviam sido flagrados, das testemunhas silenciosas da traição. Quando se voltaram em direção à casa é que finalmente viram Gustavo e Andréia prostrados em frente à varanda.
Regina olhou nos olhos de Gustavo, pálido, o suor escorrendo pela face mesmo na noite fria. Viu ele tirar do bolso a arma e apontar em direção a ela. Um só tiro, bem no meio do peito. Quando viu o disparo, Hélio ainda tentou voltar para o carro. Não teve tempo. Gustavo se aproximou e mirou outra vez o peito, outro tiro certeiro.
- Quero ver você comer a mulher dos outros agora, seu porra!
- O que faremos agora? – perguntou Andréia, confusa.
- Não faço a menor idéia. Nunca matei ninguém antes.
Estava sendo sincero. Realmente não tinha a menor idéia do que faria. Pensara em ligar para a polícia, em confessar e se entregar.
- Não podemos. Vamos passar o resto de nossas vidas presos. Você sabe como são as cadeias? Sabe como é a vida de um presidiário?
- Sairemos em alguns anos. A justiça no nosso país é uma merda.
- Não, cara. Você está louco? Não quero passar um dia sequer na cadeia.
Ficaram calados. Pensando. As alternativas, as opções, os desdobramentos. Fora um crime passional, um ato desesperado e impensado. Mas ainda assim um crime. O dia já estava chegando e era preciso decidir o que fazer.
- Vamos enterrá-los! – resolveu Andréia.
- Enterrar? Ficou maluca? – Gustavo estava confuso.
- Sim! Enterramos os dois e sumimos com o carro do Hélio. Depois vamos à cidade, nós dois, para sermos vistos. Podemos comprar comida. Bastante comida, para quatro pessoas. Teremos um álibi. Basta sumir com o carro. Posso jogar o carro no barranco desta estradinha aqui de trás. Aqui nunca passa ninguém.
- Mas vão encontrar o carro mais cedo ou mais tarde – Gustavo procurava prever todas as possibilidades.
- Tem um rio embaixo. É fundo. Ele vai afundar e ninguém nunca vai achar. Deixo as janelas e portas abertas, ele vai afundar rápido. Depois damos queixa de desaparecimento.
- Andréia, a gente vai se complicar ainda mais. Não tem como a gente pensar em tudo, podemos nos dar muito mal.
- Deixa de ser idiota, Gustavo. Vai fazendo a porra do buraco que eu vou dar um jeito no carro. Mas tem que ser um buraco fundo.
Andréia não deu tempo para que Gustavo refletisse sobre o plano. Pegou as chaves do carro no bolso da calça de Hélio e ligou o carro.
- Cave logo a merda do buraco, caralho! – gritou, dando ré.
Gustavo ficou alguns minutos pensando. Depois se levantou e procurou a pá no depósito. Vasculhou o terreno. Encontrou um bom lugar no fundo da chácara, fácil de cavar, a terra bastante fofa.
Andréia voltou cerca de duas horas depois, suada. Gustavo também estava ensopado de suor, pelo exercício pesado. Calculou que levaria mais uma hora cavando e resolveu fazer uma pausa para fumar. Andréia andou até o lado da cova, se abaixou e acendeu também um cigarro. Se olharam em silêncio.
Cavar um buraco. Enterrar dois corpos. Não é o tipo de coisa que se faz todo dia. Gustavo não agüentava mais cavar. Fazia um esforço sobre-humano para continuar. Depois de tirar a última pá de terra, deitou do lado de fora do buraco para descansar.
- Acabei!
- Você cavou rápido.
- A terra era meio fofa. Mas estou só o pó, e com bolhas nas mãos.
- Ainda precisamos arrastá-los e depois cobrir com a terra. Mas nisso eu posso te ajudar.
- Preciso de água.
Gustavo pegou a garrafa de água na geladeira e foi para a varanda. Observava a paisagem. Desejava poder apreciá-la em outra situação, menos caótica. Bebeu um longo gole no bico da garrafa. Ouviu Andréia se aproximando.
- Está um dia bonito – disse Gustavo se virando para Andréia.
- Verdade. Não está um dia bom para morrer.
- Acho que gostaria de morrer em um dia bonito.
- Que bom! Assim você não vai ficar triste.
Andréia empunhava a arma, só agora havia percebido. Apontava para ele. Antes que Gustavo pudesse reagir, ouviu dois disparos. Ainda em pé, colocou a garrafa sobre a mureta. Não sentiu dor nenhuma, nem sabia se havia sido atingido. Levou as mãos ao peito. Estavam vermelhas. Ela não errou. Caiu de joelhos em seguida. Sentiu o sangue saindo de seu corpo, escorrer pelo chão e empapar sua camisa. Viu Andréia se aproximar e dizer alguma coisa. Sentiu ela erguer seu braço, e, segurando os dedos de sua mão sem vida, fazer um arranhão na pele dela. Em seguida, com as unhas compridas e bem-feitas, arranhou profundamente o rosto de Gustavo.
Agora ele sabia. Sabia exatamente onde havia errado. Tudo havia sido planejado, desde o convite para a viagem. Gustavo havia seguido exatamente o plano de Andréia, sem saber. Talvez ela quisesse ficar com o dinheiro do marido. Ou talvez tenha decidido matá-lo quando descobriu a traição com Regina. E, obviamente, ela não a executaria mesma o plano de assassínio do marido, ou da amante. Andréia era uma mulher inteligente e sabia que o assassinato, puro e simples, seria muito óbvio. Para a polícia não seria tão difícil chegar até ela. Ela teceu um plano, onde acabaria com o marido e amante de uma só vez. Ele era seu bode expiatório. Toda a história surgiu à mente de Gustavo, de uma só vez. Quando ela arranhou seu rosto ele percebeu tudo.
Eram de marcas de uma luta. A luta entre um louco assassino e uma mulher indefesa. Depois de fazer o seu exercício matinal, a mulher voltou para casa. Encontrou os corpos do marido e da amiga. Antes que pudesse fazer qualquer coisa, fora subjugada pelo amigo enfurecido. Sabia que seria morta também. Temendo por sua vida, a mulher luta contra o assassino, desesperadamente. Consegue lhe roubar a arma em um golpe de sorte e disparar duas vezes contra ele.
Gustavo ainda ouviu Andréia derrubar vários objetos pela casa, mais provas da luta que havia acontecido. E então Gustavo não viu e nem ouviu mais nada. Havia morrido personagem de um plano que não sabia fazer parte. Não viu Andréia deixar cair a arma ao lado de seu corpo, e sair correndo à cidade pedir socorro. Ó Wal!!!
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